domingo, 15 de novembro de 2009

Sardinella brasiliensis

O sujeito botou os pratos na mesa, a garota trouxe as coisas da geladeira. Depois dos pratos e talheres, ele abriu o armário e pegou uma lata de sardinhas. Sentou ao lado da garota, que já começava a preparar um sanduíche, e abriu a lata, puxando a tampa com o dedo. A tampa afiada se levantou sem resistência. Lá dentro estavam duas sardinhas, decapitadas e sem o rabo, como era de se esperar. Uma das sardinhas é muito pequena, a outra, grande e gorda.

O sujeito dispõe as sardinhas sobre o pão para fazer o seu sanduíche, enquanto a garota ao seu lado mastiga. Ela se levanta e vai colocar alguma música. Além de estar querendo ouvir música, também não quer olhar para o prato dele, acha nojento olhar para as sardinhas, que vem com pele (escamas, foda-se), tripas e aquela espinhazinha branca. Sozinho, o sujeito pega primeiro a sardinha menor, corta com uma faca e coloca os pedaços no pão. Ao tentar fazer o mesmo com a segunda sardinha, alguma coisa dentro do cadáver lustroso detém a faca.

O sujeito, intrigado, contorna o obstáculo com uma incisão que abre a sardinha em duas metades. Além das tripas e da coluna branca e crocante, ali está, do tamanho de um polegar, uma pequena garrafa e, dentro da garrafa, algum tipo de pequeno papel enrolado. Quando a garota volta para a mesa - a música rolando - aquela porra daquela sardinha enorme está ali, aberta, estripada em cima do pão, e o sujeito fuça o interior do peixe com o dedo.

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Assim que a curiosidade supera o nojo, e a garota alcança uma pinça para o sujeito, dentro da garrafa, os dois encontram dois bilhetes, escritos em uma caligrafia tão minúscula que é preciso uma lente de aumento para ler. Cada bilhete contém uma frase:

"O único sofrimento verdadeiro é a dúvida e a única salvação verdadeira é a colonização interplanetária."

e

"Visite a Guatemala, o coração do Mundo Maia."

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Uma vez passado o choque, os dois almoçam, logo depois de acordarem juntos na cama que dividem há alguns meses. Eram umas 4:00 da tarde quando eles acordaram.

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Horas mais tarde, ainda no mesmo dia, os dois pegam o carro e vão para a beira do rio onde o sol se põe e esperam, abraçados e escorados no parachoque até que acontece e, de fato, é um lindo pôr-do-sol: um pedaço azul, o outro amarelo mijo, umas nuvens cinzentas iluminadas de vermelho. Quando anoitece, os dois saem dali, param em um posto de gasolina e seguem para uma parte mais isolada da cidade, uma parte perdida no mato.

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Carregando um galão cheio, o sujeito desce do carro e começa a atirar gasolina nesse outdoor, que fica no meio de um descampado. No outdoor, uma mulher sorri ao lado da frase:


" AQUI VOCÊ FAZ FORÇA E SE DIVERTE "

O abdome da mulher é muito bem definido, seus dentes são brancos e ela parece estar fazendo uso de algum tipo de aparelho cujo propósito deve ser exercitar ou alongar pernas e braços simultanetamente em todos os sentidos. O cheiro forte de gasolina se expalha, o sujeito joga o galão vazio na cara da mulher gigante no outdoor e a garota de verdade aperta o acendedor de cigarros do carro. Ela está de pé ao lado da porta aberta do carro e, quando o metal enrolado dentro do acendedor fica laranja, ela o atira na direção do outdoor, enquanto o sujeito se afasta caminhando de costas e se deita no capô do carro. Em segundos, as chamas se espalham, e o cheiro de gasolina começa a ser substituído pelo cheiro de queimado.

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Deitado sobre o carro, olhando aquela coisa grande e imóvel pegando fogo, o sujeito tem uma ereção, sem saber direito por que. Também envolvida em algum processo intímo e silencioso, a garota se senta ao lado dele no capô do carro. Os dois se olham e se beijam na boca e no pescoço, enquanto as mãos exploram areas já conhecidas. Em meio a chamas, a única coisa visível é o sorriso azulejado da mulher e a frase, enquanto, a alguns metros de distância, o casal transa em cima do carro. Do outdoor pegando fogo, brota uma fumaça preta que sobe e cruza a noite em direção ao vazio.

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