quarta-feira, 18 de novembro de 2009

NO ESCURO (amostra grátis do meu livro "O IDEOGRAMA IMPRONUNCIÁVEL" - 15 reais nas livrarias Cultura de todo o país)

.
Dentes e unhas, alguma coisa viva cai no peito, rasgando e fazendo barulho.

A cabeça ainda pesada de ressaca e sonho, começa a dar socos a esmo, o sujeito, subitamente acordado, que grita. A garota deitada ao seu lado também grita. O ser que caiu em seu peito nu grita ou guincha ou mia e foge. Some, a janela aberta ao lado da cama. Faz-se luz no quarto. A garota, apavorada, de pé, uma mão no interruptor, a outra cobrindo o rosto.

Que que foi isso? Putamerda, tu me deu um soco, ela fala, mas é como se gritasse.

Os dois dormiam juntos, depois de voltar às 4 da tarde de uma festa que durou tempo demais. Aliás, já faz alguns meses que, com alguma freqüência, eles dormem juntos. E estavam os dois, ele, um sujeito que nunca antes, pelo que se sabe, tinha batido em uma mulher, e ela, a agredida moradora daquele apartamento térreo, dormindo juntos quando -acho que era um gato – foram acordados – claro que era um gato, caralho – por esse bicho filho da puta – certo que esse gato de merda não é vacinado – que, depois disso, escapou.

Tinham, por algum motivo obscuro, brigado horrores na noite anterior. Foram dormir bêbados, se odiando. Será que era um gato mesmo? Os lençóis, sujos de sangue. Nada sério, mas ele ainda treme com a tensão. Ela alisando a própria cara. Tu tá preocupado com isso? Tu me deu um soco, imbecil.

Tu queria que eu fizesse o que? Mal-e-mal pegou em ti. Fora que tava escuro. E não fala assim comigo, sua escrota.

Que maravilha é a convivência, as palavras certas vem a eles com naturalidade.

Ela sai do quarto, vai ao banheiro e pára em frente ao espelho. Caralho, acho que vai ficar roxo. Ele, já sentado na cama, encosta um dedo no peito lanhado, segurando a respiração. Está segurando a respiração quando à boca lhe sobe, vindo do estomago, o pouco que sobrou do pouco que comeu e muito que bebeu nas últimas horas. Entra correndo no banheiro, esbarrando na garota, e se ajoelha, cara-a-cara com a privada, o rapaz que pensa não só em tudo o que seu corpo está expulsando, mas, muito pior, nas coisas que o seu corpo nunca vai ter a chance de expulsar. Ela olha para baixo, para ele que vomita, e, triunfante, sorri. Ele, que finalmente pára
de vomitar, olha para ela sorrindo, e sente tanta raiva que esquece de tudo. Quer levar mais uma, sua puta?

Ela, agora séria, sai do banheiro e vai para a cozinha. Ele espera algum tempo ajoelhado, não tanto porque queira vomitar, mais por estar decidindo o que fazer. Ainda de joelhos, escuta ela lavar a louça como se jogasse boliche – tomara que quebre todos os pratos – e limpa o sangue do peito com papel higiênico, que gruda nas bordas das feridas. Depois disso, vai até o quarto, cata as roupas do chão, se veste e caminha até a sala, de onde pode ver ela – louca – na cozinha, lavando um cinzeiro. Ele sabe que tem que ir embora, mas antes sente a necessidade de acender um cigarro, olhando para ela, que também sabe que ele tem que ir embora, e que fica possuída com gente fumando e jogando cinza no chão.

Ela arremessa, então, o cinzeiro que estava limpando. Mirou no peito. O cinzeiro de vidro cruza o ar. Olhando para esses dois, é impossível não se perguntar onde foram parar aquela garota selvagem-porém-doce e o sujeito sensível-porém-másculo? Mas de nada adianta perguntar. Até por que ela errou. Apesar de tonto e baleado, ele consegue desviar do cinzeiro, que se espatifa contra a parede. Atirou com força, a desgraçada. Nesse momento os dois se olham bem fundo nos olhos. Poderiam dizer qualquer coisa, mas ficam em silêncio. Se encaram. Então, ele sai do apartamento, batendo a porta, de alguma maneira satisfeito. Ela desiste da louça, nem pensa nas cinzas ou nos cacos de vidro, deita na cama e dorme, e é a vez dela de sonhar, e ela sonha com o paraíso, que, na cabeça dela é um lugar onde toca uma música e todo mundo conversa, meio que dançando e dando risada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário